02/04/2020
Paula Felix
SÃO PAULO - Nas fotos para redes sociais, nos encontros virtuais de grupos de amigos ou nas refeições, as bebidas alcoólicas estão se tornando cada vez mais presentes na vida das pessoas que estão em isolamento social por causa da pandemia do novo coronavírus no Brasil. Esse comportamento tem preocupado profissionais que atuam na área. O Centro de Informações Sobre Saúde e Álcool (Cisa), referência no assunto, lançou um alerta sobre os riscos do aumento do consumo de álcool nesse período de quarentena em casa. O Alcoólicos Anônimos (AA) está, desde a semana passada, realizando encontros virtuais para acolher integrantes e novos membros que esbarram nesse problema.
"Foi uma surpresa para todos nós. Não tínhamos ideia de que, ao viver o confinamento, iriam ocorrer as happy hours virtuais diariamente. Não imaginávamos que seria tão comum e isso está acontecendo com quem não tem dependência. São trabalhadores que não faziam uso de álcool de forma regular e, agora, bebem no almoço e todos os dias à noite. Ainda não é uma dependência, mas é nesta hora que precisamos ficar atentos", diz Arthur Guerra, psiquiatra e presidente executivo do Cisa.
Segundo Guerra, a população se vê em uma situação em que não pode beijar, abraçar, pegar na mão e ter contato com outras pessoas e o álcool acaba sendo utilizado como uma forma de relaxar diante deste quadro assustador. Mas ele pode causar uma série de problemas, principalmente se o consumo sair do controle. Idosos e pessoas com doenças crônicas, que integram o grupo de risco e que podem evoluir para os quadros mais graves caso tenham o novo coronavírus, devem tomar ainda mais cuidado.
"Não é fazer um discurso pela abstinência, porque o problema é o exagero. O álcool em excesso diminui a imunidade, causa alterações no fígado, coração, músculos, pulmões, ossos e cérebro. Aumenta o risco para AVC (Acidente Vascular Cerebral). Ele está ligado a 200 doenças. As pessoas precisam ter o instinto de autopreservação neste momento", pontua.
O psiquiatra diz ainda que a bebida alcoólica em excesso pode agravar quadros de depressão e ansiedade. "Parece ajudar no começo, mas deixa as pessoas mais deprimidas e ansiosas. Não vai ajudar quem tem problema psicológico, só vai piorar."
Com base em definições do NIAAA, sigla em inglês do Instituto Nacional sobre Abuso de Álcool e Alcoolismo, entidade norte-americana, o limite de consumo de álcool é de, no máximo, quatro doses em um único dia ou 14 doses semanais para homens e três doses em um único dia ou sete semanais para mulheres e pessoas com mais de 65 anos. Uma dose equivale a 350 ml de cerveja, 150 ml de vinho ou 45 ml de bebidas destiladas, como vodca, cachaça, uísque, gin e tequila.
Uma enfermeira de 37 anos, que não quis se identificar, conta que não passou a beber mais durante a quarentena, mas aderiu a happy hours virtuais durante o período. "Estamos levando a sério o isolamento social, mas o distanciamento entre os amigos chega a doer. Sinto falta de reunir as pessoas. O primeiro aconteceu na primeira semana da quarentena e foi por acaso. Estava conversando com uma amiga, introduzimos outras. Marcamos para o dia seguinte e cada uma bebia algo diferente, ao seu gosto."
Os encontros com amigos às sextas e sábados foram mantidos com um aplicativo que permite a reunião virtual. A enfermeira conta que quatro a cinco amigos costumam se reunir. Às vezes, mais de um ocorre por noite, mas ela não exagera.
"Tem sido muito divertido. Só o fato de poder reencontrar os amigos, de certa forma, já deixa o clima mais leve. Sempre fui moderada, sei o meu limite. Mesmo quando tenho mais de um encontro por dia mantenho o nível alcoólico dentro do padrão. Bebo água, alterno com suco."
Uma advogada de 27 anos, que preferiu não se identificar, conta ao Estado que, antes do isolamento, bebia apenas nas sextas e fins de semana. Agora, ela tem consumido bebidas alcoólicas quase todos os dias. "(Estou bebendo mais) simplesmente pelo fato de ficar em casa, mesmo trabalhando. O tédio e a vontade de beber aumentam muito."
Ela diz que ainda não participou de bares virtuais com os amigos, mas que alguns encontros foram marcados para os próximos dias. A advogada não esconde a preocupação com o novo hábito. "Beber todos os dias não fazia parte da minha rotina. Isso me preocupa, porque o consumo exagerado de álcool, de alguma forma, pode me prejudicar em questão de saúde. Em todos os sentidos."
AA faz reuniões virtuais
A necessidade de evitar aglomerações não interrompeu as tradicionais reuniões do Alcoólicos Anônimos (AA), que está promovendo encontros virtuais desde o dia 23 de março. O isolamento pode contribuir para que pessoas desenvolvam a dependência e também tenham recaídas. O link está disponível no site da entidade.
"O fechamento dos grupos causaria um impacto grande no monitoramento da recuperação desses membros. Sabemos do risco do isolamento, que acaba sendo um propulsor e uma causa para o alcoolismo. A diretoria administrativa pensou em fomentar as reuniões a distância, que ainda eram muito tímidas. A demanda gerou essa necessidade de desenvolver as salas de reunião", explica Camila Ribeiro de Sene, presidente da junta de serviços gerais de AA do Brasil.
Segundo Camila, o AA tem cerca de 5 mil grupos com uma média de dez pessoas cada um. Para que as reuniões continuem, integrantes das mesmas regiões estão sendo agrupados nas salas online. Embora a entidade não faça cadastro dos integrantes, tendo em vista a proposta de anonimato, a estimativa é de que pouco mais da metade dos grupos já esteja realizando os encontros por meio virtual.
"Por incrível que pareça, pessoas estão ingressando na irmandade por causa da ferramenta. Nossa maior preocupação é que a pessoa tenha um espaço para enfrentar dificuldades, encontrar estratégias para se fortalecer e ficar sóbrio."