09/08/2022
Lúcia Helena
Colunista do UOL
Se, ao ser indagado sobre consumo de álcool, você é daqueles que responde que só bebe socialmente como quem diz que toma um golinho inocente ou outro de vez em quando ou, quem sabe, é da turma que beberica no jantar como quem brinda à saúde, dois estudos recentes, publicados em um intervalo de quinze dias apenas, chegam para azedar o vinho, esquentar a cerveja, esvaziar o copo.
Eles questionam a ideia de que a bebida alcoólica consumida com moderação não faria mal algum — e não, não abordam a questão da dependência. A história dos dois é outra.
Um dos trabalhos é de pesquisadores da Universidade de Oxford, na Inglaterra, e saiu bem no meio de julho da revista científica PLOS Medicine. Nele, 20.729 homens e mulheres com idade média de 54 anos contaram, primeiro, se bebiam álcool, quanto e com qual regularidade.
Depois, fizeram exames de imagem que acusaram depósitos de ferro no cérebro até mesmo daqueles que consumiam o equivalente a seis doses semanais de bebida no máximo — e olhe lá.
O acúmulo excessivo desse mineral em determinadas regiões cerebrais não costuma ser boa coisa. Não é de hoje que ele está associado a déficits cognitivos e ao aparecimento de doenças neurodegenerativas como o Parkinson e o Alzheimer.
Também não é de hoje que se sabe que o abuso de bebida alcóolica aumenta o risco de isso acontecer. Mas nunca ninguém tinha olhado pra valer para as funções cognitivas de quem sempre bebeu com moderação. Achava-se que, aí, era possível virar o copo de cabeça fria.
Aliás, os participantes também fizeram testes de cognição e — adivinhe! — aqueles com depósitos maiores de ferro não se saíram assim tão bem.
Já o outro trabalho foi publicado na semana passada na prestigiada revista The Lancet por pesquisadores da Universidade de Washington, nos Estados Unidos. Os autores se debruçaram sobre dados de consumo de bebida entre indivíduos de 15 a 95 anos de idade ou mais, habitantes de 204 países ou territórios, ao longo de três décadas — de 1990 a 2020.
Na sequência, cruzaram essas informações com problemas de saúde registrados pela OMS (Organização Mundial da Saúde) — dos mais diversos tipos de câncer a diabetes, males respiratórios, doenças hepáticas, epilepsia e outros. Pois é...
A conclusão do artigo é que o conceito de beber com moderação precisa ser revisitado. Porque ele não é para qualquer um — ou não deveria ser o mesmo para todo mundo. Conforme o sexo, a idade e a existência de alguma condição anterior, poucas taças, copos ou latinhas já bastariam para o risco de doenças aumentar. E aumentar significativamente.
Vamos deixar o brinde de lado? Não. Vamos dizer que é tudo bobagem? Também não. Diante de estudos assim, é preciso acertar na dose da interpretação.
Beber com moderação
"Sinto um desconforto, porque eu achava que sabia muita coisa", declara o psiquiatra Arthur Guerra de Andrade, fundador e supervisor do Grupo Interdisciplinar de Estudos em Álcool e Drogas da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo). E justifica: "Sou formado há 44 anos e, em todo esse tempo, ouvi que o consumo de bebida em doses moderadas não era prejudicial."
Daí que, como o álcool é consumido há milênios e como provavelmente continuará presente no dia a dia de todos nós, o professor sempre acreditou que o melhor seria falar para as pessoas beberem com moderação, em vez de pedir para que passassem longe de um bar, por exemplo, o que seria até ingênuo.
Claro, há exceções clássicas. Isto é, gente que deve mesmo evitar qualquer gota de álcool. Ele lista: "Menores de idade, quem vai dirigir ou operar máquinas, grávidas, usuários de medicamentos capazes de interagir com a bebida e quem já tinha dependência e que não poderia beber nada sob pena de uma recaída".
Para o restante, beber com moderação seria respeitar o limite de uma dose diária, no caso de mulheres, ou duas, no caso de homens. "Por dose, estamos falando de aproximadamente 14 gramas de álcool", define Arthur Guerra.
Isso equivaleria, mais ou menos, a um copo ou lata de 300 mililitros de cerveja, a uma taça de 120 mililitros de vinho ou a 40 mililitros de qualquer bebida destilada, como a vodka, o whisky e a cachaça.
"Mas os cientistas de Oxford observaram os tais depósitos de ferro no cérebro de pessoas com um consumo pequeno", chama a atenção, com certo espanto, o psiquiatra. "Eles falam em 7 unidades de álcool, mas usaram como referência 12 gramas da substância. Ou seja, estamos falando em menos de uma dose por dia." E, segundo esse trabalho, não importaria o sexo.
Um casal dividindo uma garrafa de vinho — duas taças e meia para cada um ao longo de um jantar romântico — já teria esgotado praticamente a metade dessa cota.
"Quando vi, pensei: vamos com calma, porque eles colocaram pessoas com doenças prévias, genética diferente e outros fatores, todas na mesma panela", lembra. "Só que logo veio o estudo americano. No mínimo, isso indica que precisamos de fato estudar mais o assunto sobre qual não conhecemos quase nada. Porque sempre assumimos que não haveria problema algum, sem contar aquelas exceções que citei."
O psiquiatra faz a analogia com uma rua em que todos os postes estão apagados, menos um. "Imagine que você perdeu a chave de casa ao andar por ali e resolve refazer o caminho para encontrá-la. Se ela caiu perto do local iluminado, ótimo. Mas, no que diz respeito a doses moderadas de álcool, esses trabalhos recentes indicam que nós, pesquisadores, ainda temos uma chave para procurar. E ela se perdeu bem longe do poste aceso."
Também andam saindo estudos, aponta o médico, que vão no sentido oposto: "Recentemente, cientistas notaram que pessoas que bebem um pouco têm menos infarto e AVC do que gente que não bebe absolutamente nada", conta.
Em geral, o médico nota o que ele e seus colegas descrevem como uma curva em "J". Em palavras leigas: até certo ponto a bebida nos protegeria e, passando dele, aumentaria o risco de doenças. Mas, afinal, que ponto seria esse? Seria, pelo jeito, diferente daquele de uma ou doses por dia? O irônico é que isso renderia uma boa discussão de botequim.
Álcool na cabeça
"Chegará o momento em que saberemos, a partir de exames do cérebro, quem poderá e quem não poderá beber para prevenir as doenças neurodegenerativas", imagina o neurologista Diogo Haddad Santos, coordenador do Núcleo de Memória do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em São Paulo. Isso está de acordo com o pensamento dos estudiosos americanos: o conceito de moderação, no futuro, não deverá ser igual para todos.
Mas as investigações do cérebro humano também têm suas chaves perdidas. A questão do ferro é exemplo disso. "Existem regiões cerebrais com maior tendência a acumular esse mineral", diz Santos. "Uma delas é a dos núcleos de base, onde os cientistas britânicos observaram alterações em quem consumia álcool moderadamente."
Ela tem a ver com movimentos finos e, por isso, esses depósitos estão associados não só a dificuldades cognitivas, como a sintomas feito os do Parkinson. "Antes, achávamos isso aconteceria porque o ferro não estava sendo metabolizado direito pelo fígado. Depois, descobrimos surpresos que há gente com esses depósitos e com a função hepática normal."
Ora, a suposição de que o álcool seria a causa do acúmulo de ferro no cérebro passaria pelo fígado, mas talvez não seja tão simples assim. Em relação ao Alzheimer, esse mal sempre esteve mais relacionado ao acúmulo de determinadas proteínas entre os neurônios. "No entanto, existe também a teoria de que o excesso de ferro é que estaria por trás da doença", explica Santos.
Para ele, no final deve ser tudo junto e misturado. "E fica difícil determinar a participação do álcool apenas olhando para um estudo como o de Oxford", opina. "Até porque, em geral, quem bebe pouco faz isso socialmente. Ou seja, sai para conversar e interagir com os outros. Isso por si só já seria, em contrapartida, um comportamento protetor", revela.
Beber socialmente
Nós temos uma reserva cognitiva social. Isso mesmo: uma espécie de poupança de cognição, cultivada ao longo da vida e que pode ser usada quando parte dos neurônios começa a ir para o espaço.
Sempre pensamos que alguém com doutorado teria mais reserva cognitiva do que um analfabeto — e, na maioria das vezes isso é verdade. "No entanto, a reserva cognitiva é composta pela educação formal, aquela que recebemos na escola, e pela educação informal, que seria o que aprendemos com a vida. E, nesse ponto, pesam bastante as relações sociais, as conversas que temos, as histórias que ouvimos de pessoas bem diferentes", explica o neurologista.
Logo, em tese, algumas pessoas com os tais depósitos de ferro no cérebro — provocados pelo álcool ou pelo que for — podem estar mais blindadas por conviverem com mais gente. Motivo, então, para uma happy-hour?
Os dois entrevistados ainda não enxergam razão para a gente cancelar esse programa. Mas concordam no seguinte: esses dois grandes estudos mostram que a ciência precisa ficar mais de olho enquanto a gente bebe, mesmo com toda a moderação.